Penny Dreadful – Uma série de horrores…

De início não tive vontade alguma em dar uma hipótese à série televisiva “Penny Dreadful”.

Não fosse o elenco a dar-me alguma esperança, não teria perdido um único segundo a assistir àquele que pensei que fosse mais um festival de sangue e situações assustadoramente mal-amanhadas.

Afinal estava enganado!

Surpresa das surpresas, “Penny Dreadful” é um tesouro e, para mim, um marco no género televisivo de horror e fantasia. É tão bom que já revi as suas três temporadas.

Uma epifania poética…

É uma série de televisão com momentos marcantes não só pela sua intensidade dramática como pela sua beleza poética.

Momentos como este, em que toda a minha atenção se virou para o ecrã ao ouvir o murmurar das ondas, o som das gaivotas e de passos na areia, acompanhados por simples acordes de violino e piano, preenchendo toda a minha existência num crescendo emocional.

Percebi logo que estava perante o ocaso da série e que este só poderia ser épico.

Um homem ofegante, vestido de negro, caminhou na direcção de um rio carregando nos braços um corpo envolto num lençol.

A compaixão é um sentimento sempre presente, pois todos os personagens necessitam de uma redenção para os seus próprios demónios.

Caindo sobre os joelhos, segurou aquela mortalha na água. Afastou lentamente o lençol, revelando o rosto de uma criança.

Acarinhou-lhe ternamente a face, num gesto de amor profundo misturado com uma dor excruciante.

Com o olhar perdido, o homem de negro, abandonou a criança à corrente do rio e a sua voz suave ressoou em “off”, recitando um poema:

There was a time when meadow, grove, and stream,
The earth, and every common sight,
To me did seem
Apparelled in celestial light,
The glory and the freshness of a dream.
It is not now as it hath been of yore;—
Turn wheresoe’er I may,
By night or day,
The things which I have seen I now can see no more.
(…)

Wordsworth, William. “Ode: Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood” @ Poetry Foundation.
Rory Kinnear a recitar o poema de William Wordsworth, na série “Penny Dreadful”.

Não foi a primeira vez que se escutou este poema na série.

Logo no início há um momento em que o jovem Victor Frankenstein espraia toda a sua tristeza recitando-o numa campina verde de ervas altas.

Parecendo ser um dos pilares do enredo, o poema surge como uma dialéctica entre a mortalidade e a imortalidade expondo a crueldade de ambas.

Dizer muito mais, além disso, seria criar um “spoiler” que tiraria algum encanto àqueles que ainda não viram a série.

Não muito diferente da forma como se enquadra na série, o poema é um ensaio sobre a infância, sobre a perda da inocência quando nos apercebemos da nossa vulnerabilidade perante o mundo, da sua vivência enquanto as tragédias da vida se desenrolam aos nossos olhos.

É como se, de repente, o mundo se tornasse numa melancolia dolorosa, num peso e angústia insuportável, bem ao estilo romântico do século XIX que se centrava no drama humano, nos amores trágicos, nos ideais utópicos e nos desejos de escapismo.

Aliás, criando sublimes momentos de recitação e diálogo, todo o enredo está repleto de personagens e de referências literárias da cultura anglo-saxónica – William Shakespeare, Henrik Ibsen, Mary Shelley, Bram Stoker, John Clare, William Wordsworth, John Keats, Henry Rider Haggard, a Lord Tennyson, entre outros.

Um bestiário improvável.

Penny Dreadful reúne e adapta parte do fabuloso “bestiário” produzido pela literatura inglesa da época vitoriana.

É uma história bem à imagem dos romances góticos do século XIX, na qual a vulnerabilidade humana é explorada e manipulada por monstros, demónios, bruxas, vampiros, místicos, lobisomens e meros humanos consumidos pelo desespero e vingança.

Dito assim parece medonho, mas facilmente encontramos uma delicadeza e essência poética no guião excepcionalmente escrito pelo criador da série, John Logan, apoiado por Andrew Hinderaker e Krysty Wilson-Cairns.

A história é magnificamente interpretada por Timothy Dalton (Sir Malcolm Murray, uma encarnação do aventureiro Allan Quatermain misturada com Van Helsing), Eva Green (Vanessa Ives, uma medium e encarnação de uma deusa egípcia), Josh Hartnett (Ethan Chandler, um Lobisomem), Rory Kinnear (John Clare, a criatura de Frankenstein), Harry Treadaway (Dr. Frankenstein), Reeve Carney (Dorian Gray, um imortal), Billie Piper (Lyli, a noiva de Frankenstein), Christian Camargo (Drácula), Olivia Llewellyn (Mina Harker) e Shazad Latif (Dr. Henry Jekyll).

No fim de contas, o que descobrimos com “Penny Dreadful” é que nós somos os nossos próprios demónios, mais poderosos que vampiros, bruxas e criaturas imortais.

O que é um “penny dreadful”?

Além desta corrente erudita em torno da série, não nos podemos esquecer da matriz referencial aos contos de cordel que animavam o imaginário urbano de Londres, como o “The String of Pearls” (1846 – 1847), de James Malcolm Rymer e Thomas Peckett Prest, que tem como vilão o personagem Sweeney Todd, popularizado, em 2007, no filme homónimo de Tim Burton.

Na Inglaterra do século XIX esse género literário, muito popular, era conhecido como “Penny dreadful” ou “Penny blood” que, traduzido literalmente, dá qualquer coisa como “um tostão de horror” ou “de sangue”.

Eram livros de baixo custo, que narravam “um mundo e aristocratas letárgicos, baronetes assassinos, senhoras de título viciadas no estudo da toxicologia (estudo de veneno), de ciganos e caciques salteadores, homens com máscaras e mulheres com punhais, de crianças roubadas, bruxas enrugadas, jogadores sem coração, libertinos nefastos e princesas estrangeiras.” (Flanders 2014).

Foi nestas histórias, e em todo o imaginário da época vitoriana, que Jonh Logan se inspirou para criar a série Penny Dreadful, exibida no canal Showtime.

Referências:

Duffy, C. 2018. The String of Pearls: A Romance (1846-47) – Caitlin Duffy [Online]. Disponível em: https://caitlinduffy.hcommons.org/2018/06/14/the-string-of-pearls-a-romance-1846-47/.

Flanders, J. 2014. Penny dreadfuls [Online]. Disponível em: https://www.bl.uk/romantics-and-victorians/articles/penny-dreadfuls.

Sala, G.A. 1862. The seven sons of Mammon: a story. London: Tinsley Brothers.

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