Little Walter: Quando o Riso Esconde a Tristeza

Little Walter

Little Walter revolucionou a arte circense ao transformar o palhaço Auguste numa personagem imprevisível e profundamente humana. Da pobreza ao estrelato, da guerra à saudade, esta é a história de Alexandre Ulrich e da sua ligação profunda com Portugal.


Faz alguns anos que não me sento na plateia de uma pista de circo. Na verdade, nunca tive grande encanto pelas suas maravilhas. Mas algo mudou quando uma pequena criança me empurrou para lá, sempre que as caravanas se instalavam a poucos metros da nossa casa.

Diariamente fazíamos a “inspecção” da montagem. Quando a grande tenda subia, os olhos daquela miúda brilhavam com tal intensidade que só me restava puxar da carteira.

Lembro-me perfeitamente da última vez.

Foi há dez anos, quando chegou à cidade um circo que trazia no cartaz quase todo o imaginário Disney. Mal os vi, sabia que teria de levar a minha filha àquele circo.

Sentados, em expectativa, sentimos o desmoronar da ilusão. Tal como eu, ela estava inundada com a tristeza que os artistas traziam no peito, no olhar, no jeito. Uma tristeza que a todo o custo procuravam ocultar.

Ao fim de quinze minutos, a miúda pedia delicadamente para ir para casa.

Estava triste. Não quis pipocas.

Não voltei mais ao circo. A minha filha, sim.

Quando as coisas velhas trazem emoções novas

Lembrei-me desta história quando, recentemente, encontrei uma extensa reportagem publicada na revista Illustração Portugueza de 8 de Fevereiro de 1908. Falava de um palhaço chamado Little Walter — Alexandre Ulrich — que actuava no Coliseu de Lisboa.

Olhei-o bem nas fotografias.

Ali estava.

O olhar desiludido e o sorriso que não passava de uma caricatura. Uma alegria triste sob a pasta branca, pontilhada de manchas avermelhadas, que lhe cobria o rosto. Por baixo das grossas e arqueadas sobrancelhas riscadas acima dos olhos, havia algo que reconheci.

Afinal, talvez exista algo de profundamente dramático no circo. Talvez seja a caricatura da vida, com as suas dores, frustrações e alegrias. Mostrar felicidade quando por dentro se está a desmoronar — não é isso que fazemos todos?

Três xelins por dia e um sonho maior

Nascido em Liège, na Bélgica, em 1879, Walter iniciou a sua carreira muito jovem numa trupe acrobática chamada “Les Bourbonnel”. Estreou-se no Circus Renz — um circo alemão que esteve em cena entre 1842 e 1897 — como acrobata e écuyer.

Ninguém deu conta dele.

Pagavam-lhe mal, três xelins por dia. A sua situação era ingrata. Andava sempre assoberbado de ideias, mas o seu papel na trupe era irrelevante, não lhe permitindo extravasar toda a criatividade que fervilhava. Se ao menos lhe pagassem o valor que julgava merecer, algum proveito teria.

Propôs-se a ser clown. O seu grande sonho.

Investiu quatro xelins — mais de um dia de trabalho — na compra de uma sobrecasaca preta, um enorme colete, umas calças extremamente largas e um par de botas militares. Aquelas botas que utilizou durante toda a vida artística. Com essas peças, criou um novo tipo de palhaço: o “Auguste”.

A aprendizagem terá vindo de Tom Belling, acrobata e écuyer britânico que trabalhava no Circus Renz desde 1869 e que foi o primeiro palhaço Auguste. Mas Walter não copiou — transformou. Havia nele uma inquietação, uma necessidade de reinventar constantemente.

A improvisação como arte

O homem por detrás de Little Walter era uma pessoa em constante hiperactividade criativa. Procurava inspiração nas personagens do dia a dia, revelando-se exímio nos papéis femininos, uma das suas transformações mais apreciadas.

Com Walter, o Auguste vestido com roupa de gala começou a perder relevância. Era monótono. O público queria ser surpreendido com algo novo.

As constantes experiências de Walter ofereciam essa variedade. Não existiam limites. Aparecia com fatos aos quadrados, culotes de fundo flácido, calças com pernas entrelaçadas. Exibia um estilo dândi decadente, de elegância ridícula e estrondosa.

Para muitos autores, como Auguste Rémy, Little Walter foi o “primeiro Auguste cuja originalidade superou o palhaço”. Caricaturou o próprio género que ajudou a criar.

Antonet e Grock: parceiros opostos

Durante dez anos — entre 1896 e 1906 — Little Walter fez parceria com Antonet. Juntos, desenvolveram um conjunto de peças humorísticas que se tornaram referência para as gerações seguintes: “Kubelick II e Rubinstein”, “Hamlet”, “Le Clariniste”, “Le Soldat”.

Nesse período, passaram pelo The Barnum & Bailey Circus Greatest Show on Earth, de James Anthony Bailey, que fez uma digressão europeia entre 1900 e 1902.

Mas havia tensão.

Antonet era obsessivamente controlador, planificava cada detalhe, ensaiava cada gesto. Walter era o oposto: extremamente versátil, possuía uma formidável capacidade de improviso, adaptando-se ao público que tinha à frente.

«Quando me apresento pela primeira vez deante de um público que não conheço, começo por tactear, por apalpar, cuidadosamente…», explicava Walter na entrevista à Illustração Portugueza em 1908.

Talvez pelo cansaço, ou por incompatibilidades que se tornaram insustentáveis, Little Walter decidiu abandonar a dupla e estabelecer o seu próprio espectáculo.

Quando Antonet começou a trabalhar com Grock, em 1906, encontrou o parceiro ideal. Ao contrário de Walter, Grock partilhava do mesmo cuidado pela planificação, precisão e detalhe. Nem Antonet nem Grock eram ainda famosos, mas Antonet tomou o papel dominante. Grock, menos experiente, fez a sua aprendizagem substituindo Little Walter.

Nos registos fotográficos, é muito fácil confundir os dois. A cópia era quase perfeita.

De facto, Grock pode ter sido o Little Walter que Antonet sempre desejou: metódico, conservador, obediente.

Lisboa: a terra onde escolheu nascer

Embora tivesse actuado em Portugal pela primeira vez em 1897, no Teatro D. Affonso no Porto, foi em 1908 que Little Walter se tornou uma das maiores atracções do Coliseu de Lisboa. A sua patonímia: “Walter Aviateur”.

Na entrevista à revista Illustração Portugueza, descrevia-se como um showman em ascensão, cheio de sonhos e objectivos. Casado com Emilie Lecusson, francesa nascida em Coimbra, com quem teve dois filhos, acabou por estabelecer laços profundos com a cidade.

«Adoro Lisboa, porque sei que tenho em cada espectador um amigo e dá-me a impressão que trabalho na minha terra. Já considero Portugal como a terra onde nasci, porque, por muitos laços de família, eu sou português. A minha mulher nasceu em Coimbra, meu filho nasceu em Lisboa…»

Há algo de comovente nestas palavras. Um homem que escolheu onde pertencer.

A guerra que levou o riso

De um momento para o outro, o mundo virou-se do avesso. Os ventos de guerra sopraram avassaladores, levando a vida de milhões de jovens e marcando o início do declínio de muitos artistas.

No dia 7 de Novembro de 1914, Little Walter estava em Bordéus. Dali escreveu uma carta ao seu amigo Francisco Cerejo, de Lisboa. Há muito tempo que não tinha notícias do seu filho Nené que, meses antes do início da guerra, partira para a Bélgica para ficar ao cuidado de um tio.

Contou nessa carta que iria partir para Paris e para a guerra. Queria vingar tudo o que os alemães lhe haviam roubado.

«Diz a todos que o Walter não vai fazer mais palhaçadas. Já não é o intermédio militar que vou fazer. Agora, vou ser militar de verdade, porque os alemães roubaram-me tudo, a minha pátria, os meus pais e o meu filho. Vou vingar o sangue dos meus irmãos. Vou matar ou morrer. Lembra-te algumas vezes de mim, que sempre fui teu amigo.»

A carta termina assim: «Bordéus, 7 de Novembro. Little Walter.»

O regresso e o pano que cai.

Após a Primeira Guerra Mundial, fez várias épocas no Cirque d’Hiver em Paris, dirigido por Gaston Desprez, com Ilès, E.P. Loyal e o seu filho Joe Walter.

Mas voltou a Portugal. Alugou uma casa na Rua da Glória, em Lisboa, dedicando-se às tournées do seu Circo Music Hall pelas cidades e vilas portuguesas.

Em Junho de 1937, a revista Ilustração noticiou que Walter recebera a comenda da Benemerência, atribuída pelo Governo português pelas suas actuações nos asilos e hospitais infantis. Somou-se a medalha de ouro da cidade do Porto.

No mês de Abril desse ano partiu para uma nova tournée. Adoeceu em Abrantes. Em Castelo Branco o seu estado de saúde agravou-se. O seu genro Geo — casado com a sua filha mais velha, Elena Walter — ainda tentou arranjar-lhe um internamento num hospital de Lisboa.

Já não havia nada a fazer.

O sorriso de Little Walter apagou-se. O pano do Circo Music Hall caiu.

Morreu em Castelo Branco em Junho de 1937, pobre, mas rodeado por toda a família que, com ele, vivia de entreter e fazer rir os outros.

Penso nisto quando recordo aquela tarde no circo com a minha filha. O desmoronar da ilusão que ambos sentimos. Talvez ela, aos três anos, já percebesse o que levei anos a entender: que o circo é sobre mostrar alegria quando por dentro estamos a desmoronar.

Como a vida, basicamente.

Little Walter passou a vida a fazer os outros rir enquanto carregava as suas próprias dores. E quando a guerra lhe roubou tudo, foi capaz de trocar a máscara do palhaço pela farda do soldado.

No fim, voltou. Voltou a Portugal, a Lisboa, à terra que escolheu como sua.

É, talvez, uma das histórias mais autênticas sobre o preço da arte: dar alegria aos outros enquanto se carrega a própria tristeza. Fazer rir quando se quer chorar. Continuar, sempre.

Mister Olsen