Adelina Patti. A primeira super estrela em Lisboa

Doidice, delírio e nervose.

Entre Outubro de 1885 e Março de 1886, os melómanos lisboetas viveram na ansiedade.

Estava para chegar ao Real Theatro de São Carlos a superestrela do seu tempo: Adelina Patti.

Como dizia Théodore de Grave em 1865, aos 22 anos ela já cantara diante todos os soberanos, já conhecera todos os sucessos, já se tornara num ídolo do “público mais inteligente do planeta”. Entre os seus amigos contava com “príncipes e grandes senhores; aos seus pés caíram coroas; (…) fez muitos corações baterem em segredo” e era amada por todos os que se aproximavam dela (de Grave, 1865, pp. 35–36).

“Doidice”, “delírio” e “nervose”. Era assim que Casimiro Dantas, um cronista da imprensa ilustrada portuguesa, descrevia a reacção da “high life” lisboeta à actuação da soprano Adelina Patti no Real Theatro de São Carlos (Dantas, 1886a).

Patti foi uma das mais reputadas cantoras de ópera da sua época e admirada por Giuseppe Verdi.

Nascida na Espanha, filha de pais italianos que emigraram para os Estados Unidos da América, estreou-se, com 16 anos, na New York Academy of Music. Na Europa estreou-se a 14 de maio de 1861, na Real Opera Italiana de Covent Garden.

A sua carreira, como “soprano coloratura”, durou quase sessenta anos.

As dúvidas e os receios do público e da imprensa.

Em Outubro de 1885 foram anunciadas cinco actuações de Adelina Patti, que se haveriam de realizar no mês seguinte.

O anúncio foi de tal forma estrondoso que a bilheteira do São Carlos esgotou em 48 horas. A procura de bilhetes era tal que se desenvolveu um mercado de venda paralelo e deu azo a burlas de toda a espécie.

No teatro cada bilhete foi vendido por um preço exorbitante (Lobato, 1886b, p. 74).

Para os melómanos lisboetas, a actuação de Adelina era uma ocasião que não poderiam desperdiçar, pois, justa ou injustamente, surgiam boatos acerca do declínio artístico de Patti que, então, contava com 43 anos.

Outro cronista, Gervásio Lobato, referindo-se aos desempenhos da artista em Barcelona, Valência e Madrid, dava eco dessas reservas na crónica da revista ilustrada “O Occidente” (Lobato, 1886a).

Na verdade, em 1884, por entre as ovações da plateia em Barcelona e Valência, a diva foi vaiada, gelando as expectativas daqueles que em Madrid desembolsaram consideráveis somas para obterem o bilhete.

Camarote Real do Real Theatro de São Carlos, circa 1893.
Teatro Nacional de São Carlos — Wikimedia Commons, n.d.G.

Adelina Patti, circa 1886.
Guy Little Collection. © Victoria and Albert Museum, London (S.138:340-2007).

Segundo Gervásio Lobato o problema não estaria performance da cantora, mas sim, no avultado preço da bilheteira.

“Os cavalheiros que assobiaram a Patti em Valência e em Barcelona não assobiaram a diva, assobiaram o empresário, não reclamaram porque a Patti lhes desse notas a menos, reclamaram porque o empresário lhes levou notas a mais”.

(Lobato, 1886a)

Contudo, segundo o relato de Claude Augé na revista “Larousse Mensuel Illustré”, em Valência, ao recusar-se a cantar a valsa “Il Bacio”, Adelina Patti recebeu a primeira pateada da sua carreira (Augé, 1919, p. 944).

Seria em Madrid que se iriam desfazer as dúvidas. Logo na primeira récita Patti triunfou, levantando qualquer hostilidade e sendo aclamada de forma “ruidosa e unânime”.

Estas eram óptimas notícias para o empresário do São Carlos, António de Campos Valdez, que podia ficar tranquilo e confirmar aquele que poderia vir a ser o momento alto de uma excelente época no teatro lisboeta.

Contudo, chegou o mês de Novembro e não se viu a Patti em Lisboa…

António de Campos Valdez
António de Campos Valdez, empresário do Real Theatro de São Carlos. Ilustração publicada na sua nota de falecimento, em 1889 (Lobato, 1889).

A excêntrica Adelina Patti em Lisboa.

Um surto de cólera alastrara-se um pouco por toda a Europa, em especial na Espanha e, tal como hoje, havia quarentenas por todo o lado.

Por esse motivo Adelina Patti fez saber que, enquanto não fossem levantadas as quarentenas, não actuaria em Portugal.

No Parlamento, sente-se o pânico, sobressaindo as preocupações (sessão de 8 de julho – de 1885) pela “barraca” situada na avenida da Liberdade, onde foram recolhidos os “indivíduos que conseguiram atravessar o cordão sanitário estabelecido na fronteira” (com Espanha): os deputados expressavam a sua apreensão pelos danos que poderiam ter causado na viagem até Lisboa, mas escondiam mal o medo pelas suas próprias vidas.

A concorrer para o atraso havia, certamente, a questão do seu casamento com o Marquês de Caux, Henri Roger de Cahusac.

O casamento de ambos colapsou e Caux concedeu-lhe a separação em 1877 e o divórcio em 1885, altura em que Patti perdeu metade da sua fortuna.

Portanto, a cólera, o escândalo e a frustração terão sido motivos suficientes para o atraso.

 Adelina Patti e o Marquês Henri de Caux
Fotografia de Adelina Patti e do Marquês Henri de Caux, ca. 1868, por Bergamasco. Guy Little Collection © Victoria and Albert Museum, London (S.138:235-2007).

Por fim foi anunciada a chegada da cantora à estação ferroviária de Santa Apolónia, às 6 horas da manhã do dia 25 de Março de 1886.

Porém a ansiedade era tal que “já a Patti almoçava no Grande Hotel de Lisboa os filetes que o Malta lhe preparara (…) e na Avenida ainda corria com insistência que a Patti não chegava.” (Lobato, 1886b, p. 74).

Os receios só se dissiparam quando a artista foi vista a passear, junto ao rio Tejo, numa carruagem descoberta, na companhia do tenor francês Ernesto Nicolini, com quem viria a casar meses depois.

Foi o alívio! Ela, afinal, chegara!

Os detalhes da sua estadia em Lisboa foram minuciosamente relatados nas revistas sociais da época.

Desde o copo de água tépida que pediu, assim que chegou ao Hotel, à detalhada descrição dos seus menus e as referências à sua preferência exclusiva pelo vinho do Château Margaux.

João da Mata, o dono do Grande Hotel de Lisboa, situado na Avenida da Liberdade, esforçava-se por satisfazer todos os desejos da celebridade que, com a sua presença, atraía as atenções para o seu estabelecimento hoteleiro.

Durante a estadia em Lisboa, no cardápio dos almoços de Patti constava caldo de arroz, bife de lombo à Chateaubriand, espinafres, espargos, peixe cozido, frango assado e compota de maçã.

Aos jantares, servido por volta das 19h00, era servida uma sopa de massa, peixe cozido, bife à inglesa com batatas, ervilhas à inglesa, frango assado, espinafres, espargos («Adelina Patti», 1886b, p. 2).

O detalhe vai ao ponto de relatar o estado da garganta e do estômago da artista, enfatizando-se o incómodo que uma dor reumática no joelho lhe causou («Adelina Patti», 1886b, p. 2).

Fotografias gentilmente cedidas pelo Château Margaux © Francois Poincet (Esquerda) e e Brice Braastad (Cima).

Château Margaux

O território do Château Margaux era conhecido, no século XII como “la Mothe de Margaux”. Uma área sobrelevada em relação à planura que caracteriza a região do Médoc (região da Nouvelle-Aquitaine), no sudoeste francês bem em frente às águas atlânticas do Golfo da Biscaia.

Foram desde sempre terras propícias à produção de vinhos de grande qualidade, não só pelas suas características geomorfológicas como pelo clima.

Ao longo de várias gerações e com a constante introdução das melhores práticas de gestão das terras e dos processos de vinificação, levaram à obtenção, pela primeira vez, da classificação Premier Grand Cru Classé em 1855.

Desde então, os vinhos do Château Margaux, mereceram o reconhecimento mundial pela produção de vinhos de elevada qualidade.

(in “L’Histoire” – Château Margaux)

A actuação no Real Theatro de São Carlos.

O vaticínio da decadência artística de Patti assombrava os diletantes de Lisboa. A cidade dividia-se entre aqueles que acreditavam nas suas virtuosidades e aqueles que lhe auspiciavam a desgraça.

Por outro lado, o público do São Carlos tinha já a sua diva — Fidès Devriés.

Por isso Adelina Patti tinha de se fazer valer das suas qualidades artísticas.

“O público ao princípio estava numa expectativa fria, quase hostil. O público adora a Devriés, e nós achamos-lhe carradas de razão por que fazemos o mesmo (…) e entendeu que o seu culto pela formosa Fidès lhe proibia encarecer outro ídolo.”

(Lobato, 1886b)

Na noite de 27 de Março de 1886, uma multidão invadiu o São Carlos. Preparavam-se para confirmar a fama daquela que começou a carreira nos Estados Unidos da América e agora fazia furor nos palcos da Europa.

A tensão era grande e apesar de Patti ter cantado e representado assombradamente bem, não conseguiu encantar o público com “Il barbiere di Siviglia” de Gioachino Rossini.

Finalmente, arrancou os primeiros aplausos no 3.º acto cantando a valsa da ópera “Dinorah” de Giacomo Meyerbeer. Terminou a actuação em apoteose com “Il Bacio” de Luigi Arditi.

Foi um sucesso estrondoso! Foi quase unânime a aclamação.

Por toda a imprensa surgiram elogios à primeira performance de Patti no São Carlos, acompanhada por Angelo Masini, Antonio Cotogni, Giuseppe Frigiotti, Neri, Pinto, Giovanni Soldà e Antonio Ghidotti.

A primeira gravação de Patti

Esta foi a primeira de duas sessões de gravação feitas por William e Fred Gaisberg em nome da Gramophone & Typewriter Co. Ltd da Grã-Bretanha, no local em seu castelo “Craig-y-Nos” no País de Gales.

Jewel Song from Faust – Mme. Adelina Patti – 1905 Gramophone & Typewriter Co. Record · Bruce Victrolaman Young on Youtube

Por fim

A fama e poder de Adelina Patti despertaram sentimentos contraditórios entre a multidão lisboeta que, tanto se dividia pela condenação da artista pela sua suposta avidez de dinheiro como pela admiração da sua elegância e formosura.

Acerca do tom de uma crónica sobre Adelina Patti, Casimiro Dantas escreveu:

A admiração pela Adelina cantora fá-la sufocar uns pequeninos ódios pela Adelina mulher, e impele-a, como o mais entusiasta das “reporters”, até aos aposentos da “madonna”, onde há um perfume estonteador de violetas e de essências caras, uma atmosfera saturada d’aromas finos e embriagantes.

(DANTAS, 1886a, p. 2)

A ostentação era evidente e exemplos não faltavam.

Por exemplo, impressionou os espectadores quando interpretou “La Traviata” de Verdi em Covent Garden (1861) com diamantes cravados no corpete do vestido, criando um efeito deslumbrante.

Avaliado em cerca de 200.000 libras, foram contratados dois polícias da esquadra de Bow Street para integrarem o coro da ópera e vigiarem o vestido (Opera Divas, sem data).

Adelina Patti como Aida na ópera “Aida”. Guy Little Collection. © Victoria and Albert Museum, London (S.138:303-2007).

Peter Clark, director do Arquivo da Metropolitan Opera de Boston, citando Robert Tuggle, insinua que Adelina Patti seria a cantora mais bem paga do seu tempo.

O arquivista de longa data do MET, Robert Tuggle, observou no seu livro “The Golden Age of Opera” que ela foi, provavelmente, a cantora mais bem paga da história da arte, com uma remuneração de US $ 5.000 por noite, que insistiu receber em ouro no seu camarim antes de cantar (cerca de US $ 143.000 em dólares de 2020 aproximadamente).

(Clark, sem data)
“A Grande Cantora Pequenina Patti”. Caricatura de Raphael Bordallo Pinheiro (PINHEIRO, 1886).

Aquando da passagem por Lisboa, foram muitos os comentários e considerações a propósito do preço dos bilhetes e das subscrições face à depauperada capacidade financeira mesmo dos lisboetas mais abastados.

“Porque a vinda de Adelina Patti a Lisboa, não serão os trinta contos da assinatura distribuídos por parcelas um pouco superior às da Grand Opéra ou de Covent Garden, servidas de um público que geme dolorosamente a cada prazo das suas contribuições e que, para calçar luvas de “suède”, almoça tristemente café com leite da bilha”.

(BELDEMONIO, 1885)

Contudo, assistiu-se a um debate acesso na imprensa. Se para uns era inquestionável a sua atuação, para outros a idade de artista já se fazia sentir na voz.

“Corriam por aí versões pessimistas que davam a Patti entrada em decadência; a sua primeira récita em Lisboa foi um desmentido brilhante a esses falsos boatos, uma afirmação triunfante da plenitude completa em que ainda estão os seus privilegiados dotes de artista.”

(LOBATO, 1886b)

“Se me disserem que a Patti foi uma cantora genial e assombrosa, acredito-o piamente, porque enfim, as grandes reputações não se fazem apenas sob o império da crítica, e na maneira da notável artista, no seu método de canto, no seu modo de frasear, no seu estilo, no timbre da sua voz, há ainda os reflexos d’um astro de primeira grandeza.”

(DANTAS, 1886b)

Seja como for, o sucesso foi inegável.

No momento da partida, “à gare foram despedir-se inúmeros admiradores da célebre cantora…” («Adelina Patti», 1886b) que se iria demorar dois dias em Paris onde precisava “dos serviços do seu dentista para esmaltar os dentes…” e seguiu “de Paris para o seu castelo no País de Gales…”.

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