Adelina Patti em Lisboa

Adelina Patti

Em Março de 1886, Lisboa entrou em pânico. A maior estrela da ópera mundial estava prestes a chegar ao São Carlos, mas os bilhetes esgotaram em 48 horas e circulavam boatos sobre o seu declínio. Aos 43 anos, Adelina Patti ainda conseguiria encantar? A cidade dividia-se entre adoração e cepticismo.


Na manhã de 25 de março de 1886, enquanto Adelina Patti já saboreava os filetes que João da Mata lhe preparara no Grande Hotel, na Avenida da Liberdade corria ainda o boato insistente de que ela não vinha. A ansiedade era tal que a cidade de Lisboa recusava acreditar na sua própria sorte. Adelina Patti não era apenas uma cantora de ópera. Era a superestrela do seu tempo, a primeira celebridade moderna no sentido que hoje reconhecemos: adulada, criticada, invejada, escrutinada ao pormenor.

Aos 22 anos já cantara para todos os soberanos europeus. Aos 43, quando chegou ao Real Theatro de São Carlos, trazia consigo uma fama tão pesada quanto os diamantes que cravava nos vestidos. E Lisboa não sabia bem o que fazer com ela.

O pânico dos quarenta e oito contos

Entre outubro de 1885 e março de 1886, os melómanos lisboetas viveram numa espécie de ansiedade coletiva. Anunciaram-se cinco atuações de Patti para novembro. A bilheteira do São Carlos esgotou em quarenta e oito horas. Quarenta e oito horas para desaparecerem bilhetes vendidos a preços exorbitantes — cada um custava cerca de vinte contos de réis.

Desenvolveu-se um mercado paralelo, surgiram burlas de toda a espécie. Gervásio Lobato, cronista perspicaz da revista O Occidente, resumiu o sentimento geral: era uma mistura de deslumbramento e ressentimento, aquela sensação de estar a ser enganado ao mesmo tempo que não se quer perder a oportunidade.

Mas novembro chegou e Patti não apareceu.

Uma epidemia de cólera alastrava pela Europa. As quarentenas multiplicavam-se. No Parlamento português, os deputados discutiam em pânico a “barraca” da Avenida da Liberdade onde recolhiam quem atravessava o cordão sanitário espanhol, escondendo mal o medo pelas próprias vidas. Adelina Patti fez saber que não atuaria enquanto houvesse quarentenas.

A concorrer para o atraso havia também o escândalo do seu divórcio. O casamento com o Marquês de Caux colapsara, a separação concedera-se em 1877, o divórcio finalizara-se em 1885. Patti perdera metade da fortuna. Portanto: cólera, escândalo, dinheiro. Motivos suficientes para fazer uma diva esperar.

A diva que bebia Château Margaux ao almoço

Quando Patti finalmente chegou, a imprensa social relatou cada pormenor com uma minúcia que hoje reconheceríamos como pré-tabloid. O copo de água tépida que pediu assim que entrou no hotel. Os menus detalhados. A preferência exclusiva pelo Château Margaux. O estado da sua garganta, do seu estômago, a dor reumática no joelho que a incomodava.

João da Mata, dono do Grande Hotel, esforçava-se por satisfazer todos os caprichos da celebridade que, com a sua presença, atraía atenções para o estabelecimento. Aos almoços: caldo de arroz, bife de lombo à Chateaubriand, espinafres, espargos, peixe cozido, frango assado, compota de maçã. Aos jantares, servidos pelas sete da tarde: sopa de massa, peixe cozido, bife à inglesa com batatas, ervilhas à inglesa, frango assado.

Tudo isto foi reportado. Tudo isto foi lido avidamente.

Casimiro Dantas, outro cronista da época, descrevia a reação da high life lisboeta com três palavras: “doidice”, “delírio” e “nervose”. Havia qualquer coisa de histérico na atenção que a cidade dedicava àquela mulher de 43 anos que viera cantar ópera.

Fidès contra Adelina: a cidade dividida

O problema é que Lisboa já tinha a sua diva. Fidès Devriés reinava no São Carlos, adorada pelo público que agora se preparava para trair — ou não — a sua lealdade. A tensão era palpável.

Por outro lado, corriam boatos sobre o declínio artístico de Patti. Em Barcelona e Valência, no ano anterior, fora vaiada. Não por cantar mal, esclarecia Lobato, mas pelos preços obscenos dos bilhetes. O público assobiara o empresário, não a diva. Ou talvez assobiassem ambos — as versões divergiam.

Claude Augé, na revista francesa Larousse Mensuel Illustré, contava que em Valência, ao recusar-se a cantar “Il Bacio”, Patti recebera a primeira pateada da sua carreira. Foi em Madrid que as dúvidas se desvaneceram. Logo na primeira récita triunfou, aclamada de forma “ruidosa e unânime”.

António de Campos Valdez, empresário do São Carlos, respirou de alívio. Mas Lisboa mantinha-se cética.

A noite de 27 de março

Na noite de estreia, o São Carlos transbordava. A multidão preparava-se para confirmar ou desmentir a fama daquela que começara a carreira nos Estados Unidos e agora fazia furor na Europa.

A tensão era enorme. Patti cantou e representou assombradamente bem “Il barbiere di Siviglia” de Rossini, mas o público manteve-se frio, quase hostil. Como observou Lobato, adoravam Fidès Devriés e o culto por ela parecia proibir-lhes encarecer outro ídolo.

Só no terceiro ato, ao cantar a valsa de “Dinorah” de Meyerbeer, Patti arrancou os primeiros aplausos. Terminou em apoteose com “Il Bacio” de Luigi Arditi — a mesma canção que lhe valera uma pateada em Valência.

Foi um triunfo estrondoso. Quase unânime. A imprensa encheu-se de elogios à primeira performance de Patti no São Carlos.

Diamantes, ouro e a arte de ser odiada

O que Adelina Patti despertava em Lisboa — e em toda a parte onde ia — eram sentimentos profundamente contraditórios. Admiração pela cantora, ódio pela mulher. Fascinação pela elegância, repulsa pela ostentação.

Dantas captou bem esta ambivalência numa crónica: a admiração pela Adelina cantora sufocava “uns pequeninos ódios pela Adelina mulher” e impelia os cronistas até aos seus aposentos “onde há um perfume estonteador de violetas e de essências caras, uma atmosfera saturada d’aromas finos e embriagantes”.

A ostentação era deliberada. Em 1861, ao interpretar “La Traviata” em Covent Garden, usara um vestido com diamantes cravados no corpete — avaliados em 200 mil libras. Contratara dois polícias para integrarem o coro e vigiarem o vestido.

Era, provavelmente, a cantora mais bem paga da história da ópera. Cinco mil dólares por noite — cerca de 143 mil dólares atuais —, sempre em ouro, entregues no camarim antes de cantar.

Os comentários em Lisboa sobre os preços dos bilhetes face à depauperada capacidade financeira mesmo dos lisboetas mais abastados não se fizeram esperar. Um cronista resumiu a situação com ironia cortante: a vinda de Patti custava fortunas a quem “para calçar luvas de suède, almoça tristemente café com leite da bilha”.

O veredicto dividido

O debate na imprensa foi aceso. Para uns, a atuação era inquestionável. Para outros, a idade fazia-se sentir na voz.

“Corriam por aí versões pessimistas que davam a Patti entrada em decadência”, escreveu Lobato. “A sua primeira récita em Lisboa foi um desmentido brilhante a esses falsos boatos, uma afirmação triunfante da plenitude completa em que ainda estão os seus privilegiados dotes de artista.”

Dantas foi mais cauteloso: “Se me disserem que a Patti foi uma cantora genial e assombrosa, acredito-o piamente (…) e na maneira da notável artista, no seu método de canto, no seu modo de frasear, no seu estilo, no timbre da sua voz, há ainda os reflexos d’um astro de primeira grandeza.”

Reflexos de um astro. Não o próprio astro. A formulação era delicada, quase cruel.

O comboio que levou a diva

Quando partiu, “à gare foram despedir-se inúmeros admiradores da célebre cantora”. Iria demorar-se dois dias em Paris — precisava “dos serviços do seu dentista para esmaltar os dentes” — antes de seguir para o castelo no País de Gales.

O detalhe do dentista foi reportado. Como tudo o resto.

Adelina Patti deixou Lisboa como chegara: envolta em admiração e ressentimento, adorada e odiada, aclamada e escrutinada. Foi a primeira superestrela no sentido moderno da palavra — não apenas pela fama ou pelo talento, mas pela forma como o público se relacionava com ela: consumindo cada pormenor da sua vida, dividindo-se em facções, pagando fortunas por bilhetes, discutindo acaloradamente se ainda valia a pena.

Lisboa esgotou bilhetes em quarenta e oito horas. Depois passou meses a debater se tinha valido a pena. É, talvez, a definição perfeita de uma superestrela: alguém que nos faz questionar se o deslumbramento compensa o custo, enquanto continuamos, irremediavelmente, deslumbrados.

Mister Olsen